Entrevista com Neca Setubal – A filantropia e a inovação social no Brasil

22 septembre 2020

Entrevista com Neca Setubal por Lidia Eugenia Cavalcante Lima

entrevista Neca Setubal

 

Neca Setubal é presidente do Conselho de Governança do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE), instituição de filantropia brasileira. É uma organização sem fins lucrativos, considerada referência no país concernente ao investimento social privado, que atua em projetos próprios, apoia e financia iniciativas de terceiros, por meio das doações de seus associados. O GIFE destaca-se no desenvolvimento de ações que visam apresentar respostas às demandas e necessidades da sociedade civil brasileira no que tange às causas sociais, culturais e ambientais.

 

 

Lidia Cavalcante (LC): Neca, conte-nos um pouco sobre a atuação do GIFE

Neca Setubal (NC): O GIFE é uma organização que congrega institutos, fundações e empresas na área do investimento social privado no Brasil. Conta, atualmente, com 160 associados, com origens diversas, como institutos e fundações empresariais, familiares ou comunitárias, que investem em projetos sociais, culturais e ambientais voltados para a sociedade civil.

Nos últimos meses, o GIFE redirecionou suas ações para o enfrentamento da COVID-19 no país. Foi criado um programa chamado “Emergência COVID-19”[1], composto por eixos temáticos, para auxiliar a atuação e a articulação da filantropia, do investimento social privado e da sociedade civil face ao enfrentamento da pandemia. Os eixos dessa iniciativa são: Saúde, Proteção social e econômica, Educação, Apoio às organizações da sociedade civil, Apoio à gestão pública municipal, Apoio ao empreendedorismo, negócios de impacto social e geração de emprego e renda, Segurança e Apoio à cultura e ao bem-estar.

É um dos objetivos dessa ação colaborativa dar visibilidade a todas as iniciativas realizadas durante a pandemia pelas instituições filantrópicas, bem como dialogar com a sociedade civil, inclusive no pós-pandemia, sobre a produção do conhecimento gerado e quais foram os resultados mais estruturantes.

Durante o enfrentamento da COVID-19, o GIFE realizou uma série de conferências e debates online, com o intuito de discutir questões e temas contemporâneos relativos ao próprio investimento social privado e à filantropia. Nessa ação, destacaram-se a avaliação e as questões ligadas à transparência da gestão e dos investimentos sociais privados no país. Nós entendemos que esses temas são transversais e dizem respeito ao desenho das iniciativas e dos projetos que as fundações e os institutos estão realizando. É importante salientar que essas atividades se estenderão até 2021 quando será realizado o Congresso GIFE.

(LC): Como você vê o papel estratégico do GIFE no âmbito da inovação social no Brasil no que concerne à filantropia?

(NC): O GIFE tem um papel muito mais estratégico do que de execução direta. Nesse momento, com a pandemia, tem atuado de forma articulada à doação de recursos voltados para a luta contra a COVID-19.  Como mostra o Monitor das doações para a COVID-19[2], foram arrecadados mais de 6 bilhões de reais. Para o Brasil, é um número bastante expressivo se compararmos, por exemplo, com a própria receita do GIFE que, em um ano, de acordo com o último Censo GIFE[3], foi de 1 bilhão e trezentos mil reais. É possível perceber que há uma diferença bastante significativa.

Referido monitor apresenta, inclusive, os dados referentes aos tipos de doações, ou seja, os recursos doados por empresas, pessoas físicas e famílias também. É importante fazer esse destaque, pois muitas empresas que não tinham tradição de filantropia, nesse momento, se viram na responsabilidade de contribuírem para o enfrentamento da COVID-19. Isso é bastante valioso, pois são novos atores que podem se somar para dar continuidade a essa trilha da filantropia no Brasil e em diferentes campos de atuação.

Alguns eixos se destacaram nessas doações. Primeiramente, o da assistência social, voltado principalmente para resolver o problema emergencial da fome. Outro eixo forte é o da educação, pois 80% das fundações associadas do GIFE atuam nesse domínio. O GIFE tem uma tradição de doações no campo da educação e, assim que começou a pandemia, os doadores ligados a ele se uniram e criaram uma plataforma onde foram depositados todos os materiais, acessíveis aos professores. Além disso, esses doadores fizeram várias articulações, basicamente com os gestores municipais, tendo em vista a suspensão das atividades presenciais nas escolas.

Outro eixo importante que merece destaque é o apoio às organizações da sociedade civil, organizações de base, empreendedores sociais e microempreendedores. Também ressaltamos o contexto da saúde, obviamente, principalmente na compra de materiais e equipamentos médicos e sanitários e, além disso, o suporte e o apoio à saúde mental.

Esse é o quadro geral mapeado pelo GIFE durante a pandemia. Com esse papel estratégico, buscamos articular entidades da sociedade civil, universidades e empresas com os seus associados.  Enfim, essa articulação se concretizou rapidamente tendo em vista o caráter emergencial. Isso evidenciou trocas de experiências e teve papel estratégico inovador, quando muitas organizações passaram a trabalhar de forma colaborativa partilhando conhecimentos e ações.

LC: Então, você considera que há um papel de reconhecida inovação social nas ações desenvolvidas pelo GIFE?

NC: Sim. O papel estratégico e inovador do GIFE consiste em mobilizar o investimento social privado para a execução de práticas contemporâneas de filantropia. Uma dessas práticas inovadoras é a filantropia colaborativa, pois articula empresas que se unem e agregam parcerias. Dessa forma, se tem maior soma de recursos, partilha-se aprendizados e, portanto, gera impacto muito mais significativo das ações.

Eu acredito que essa inovação ocorre tanto nas instituições, fundações e institutos intermediários, quanto nas organizações de base, aquelas que conhecem as pessoas mais vulneráveis nas comunidades.  Foi essa colaboração que possibilitou que as populações mais sensíveis pudessem ser atendidas. É importante destacar que a articulação se deu tanto entre as organizações horizontais, quanto com as organizações de base e os agentes promotores de políticas públicas.

Outro ponto a sublinhar é a redução da burocracia em resposta à pandemia, gerando maior flexibilidade e agilidade das fundações. Eu considero que isso também possibilitou aprendizados, ou seja, é importante que as fundações tenham essa flexibilidade e agilidade. Tais características podem assegurar que haja maior impacto no desenvolvimento social e na tomada de decisões por parte dos agentes filantrópicos, em resposta às demandas sociais.

Eu gostaria de mencionar que esse processo de aprendizagem conduziu à discussão da avaliação de impacto dessas iniciativas. Agora, é importante buscar respostas para algumas reflexões. Citemos, por exemplo, quais são os problemas mais importantes? Como engajar as organizações que foram beneficiárias? É indispensável, portanto, fazer esse desenho avaliativo de modo a gerar integração e maior vínculo entre as organizações. Muitos pontos foram inovadores e eu acredito que um número significativo dessas inovações irá perdurar.

LC: Quais são os principais desafios identificados pelo GIFE em relação às estratégias de inovação social no contexto das organizações filantrópicas no Brasil?

NC: Obviamente são inúmeros os desafios. Primeiramente, como dar continuidade a essas alianças que se formaram por meio de programas e projetos realizados com diversos parceiros durante a pandemia. De forma ilustrativa, as alianças entre fundações e organizações filantrópicas captadoras de recursos e outras parceiras, por exemplo, que trabalham a inclusão produtiva com aquelas que desenvolvem ações de urbanismo social. São alianças que se constituíram para além de um só programa, ou seja, quando uma organização dirige um projeto, todas as demais organizações se empenham em colaborar.

Outro desafio da filantropia brasileira é atuar em temas contemporâneos como direito das mulheres, equidade racial, mudanças climáticas, sustentabilidade e democracia. Com esse propósito, o GIFE tem inclusive lançado uma serie de publicações sobre esses temas, como forma de dar visibilidade e partilhar conhecimento. Essa ação estratégica visa fazer com que a filantropia brasileira tenha um olhar para temas atuais e transversais. Obviamente, que são questões que possuem forte ligação com problemas clássicos da sociedade como aqueles relativos à educação e à saúde.

A governança filantrópica no GIFE tem um foco muito empresarial, de fundações empresariais. Essas empresas, na busca por maior eficiência e eficácia, criaram seus próprios programas sociais com as suas próprias equipes. Nesse contexto, o GIFE vem enfatizando e trabalhando a importância de se apoiar as organizações da sociedade civil. Dessa forma, nos últimos anos, se observa que essas empresas têm compreendido que é parte da sua responsabilidade social apoiar outras iniciativas da sociedade civil, mais especificamente, as pequenas fundações. Essa ação possibilitará a construção de uma sociedade civil mais diversa e mais forte em matéria de programas e projetos sociais em favor da defesa do bem comum.

LC: Qual o futuro das instituições filantrópicas no Brasil em termos de crescimento?

NC: No contexto brasileiro, a sociedade civil e a filantropia têm um papel fundamental, principalmente nesse momento em que se percebe que a sociedade civil é ignorada por parte considerável dos gestores públicos. Não somente a ignoram como desqualificam suas ações.

A ausência de políticas públicas mais consistentes representa um campo de ações necessário à atuação da sociedade civil, especialmente nos temas que não são atendidos satisfatoriamente pelo Estado. Durante a pandemia, a articulação da sociedade civil se mostrou fundamental na coordenação das intervenções sociais, inclusive influenciando o desenvolvimento das políticas públicas.

Isso nos leva a concluir que a pressão exercida pela sociedade civil é essencial e, a partir dela, as ações estratégicas possibilitadas pela filantropia, mas a filantropia articulada e colaborativa. Então, eu considero que o esforço empregado para modificar as condições sociais e lutar contra as desigualdades sociais no Brasil é estratégico para a construção de um futuro próximo que vise a justiça social.

Nesse sentido, destacamos a forte mobilização que tem lugar no interior das comunidades locais e a importância das lideranças comunitárias para fortalecer as lutas por políticas públicas sociais e inclusivas. Fato importante a destacar é que a geração jovem tem grande energia e motivação para lutar em favor da justiça social e pela sustentabilidade no Brasil.


Cette entrevue est aussi disponible en Français.

Notes de bas de page

[1]  Para maiores informações, consultar : https://emergenciacovid19.gife.org.br/.

[2] Uma plataforma que mostra a quantidade de doações mobilizadas para a luta contra a COVID-19 no Brasil. Consultar https://www.monitordasdoacoes.org.br/pt.

[3] Para mais informações consultar “Censo GIFE 2018”  disponível em https://sinapse.gife.org.br/download/censo-gife-2018.